domingo, 27 de setembro de 2015

Interpretação 2 - Missa do galo

1- O conto é uma narrativa curta, que apresenta uma condensação de recursos. 
a) Nesse conto, quem são os personagens e como se caracterizam? 
b) Em que espaço ou lugar acontecem os fatos narrados? 

c) Como se pode determinar o tempo em que os fatos acontecem? 


2- Uma das características do conto é apresentar um único conflito. 

Qual o conflito desse conto de Machado de Assis? No caderno, copie do texto uma frase que resume esse conflito. 

§ De que maneira a escolha do narrador em 1ª pessoa permitiu a construção desse conflito? 


3- A caracterização de Conceição é também fundamental para a construção do conflito. Como ela é caracterizada no terceiro parágrafo? 

a) No final do segundo parágrafo, o narrador afirma que Conceição acabou por concluir que a traição do marido “era muito direito”. 

A partir desse conceito, como podem ser definidos os princípios morais do personagem? 

b) Que expectativa é gerada no leitor pelo fato de ele saber que Conceição é traída pelo marido? 

c) Ao dizer que Conceição “Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar”, o que o narrador sugere quanto à possibilidade de essa expectativa se confirmar? 
d) Em vários momentos, o narrador menciona as qualidades de Conceição. A ênfase nas virtudes dessa personagem tem um efeito na história. Que efeito seria esse? 


4- O enredo, que é o conjunto de fatos, está estruturando em situação inicial, elemento modificador, conflito, clímax e desfecho. 

a) Qual é a situação inicial do conto “Missa do galo”? 
b) Qual é o elemento modificador? 

c) Transcreva no caderno o clímax, que é o momento culminante da história, quando o conflito atinge seu ponto mais elevado. 

d) O desfecho ou a conclusão representa a parte final do conto, onde se encontra a solução do conflito. Em que consiste o desfecho nesse conto? 


5- Nogueira encontrava-se na sala, quando Conceição entrou, e os dois iniciaram um longo diálogo... 
A- Explique o sentido desta frase dita pelo narrador, de acordo com o contexto: "Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro ou aventuras." 
B-Conceição diz ao rapaz que acabara de acordar, mas ele não acreditou que ela estivera dormindo. O que ele imagina que poderia ser a causa da suposta mentira? 


6- O comportamento de conceição causa estranheza ao rapaz, ao comparar se modo de agir de antes com o que ele via na noite de natal. 

A-Escreva passagens em que o narrador percebe mudanças em conceição e passa a enxergá-la com um novo olhar. 

B-Que afeito a atitude contraditória de conceição causa, aos poucos no rapaz? Responda com base no texto. 


7- Releia os seguintes trechos e explique o que eles parecem sugerir em relação á atitudes de conceição. Situe-os no contexto. 

A- "... ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido". 

B- "Cuidei que ia dizer alguma coisa: mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio...” 


8- A conversa ganha um rumo diferente, e nem Conceição nem Nogueira conseguem se afastar um do outro. 

A- Durante essa conversa com o rapaz, Conceição demonstra preocupação. O que a perturba e por quê? 

B- O que podem simbolizar os olhos compridos e, sonolentos de conceição de acordo com desenvolvimento dos fatos? 


9- No segundo parágrafo, que frase nominal antecipa o que o narrador vai contar sobre o modo de viver da família de Meneses? Justifique-se. 


10- Interprete, com base no contexto, o significado da frase "O teatro era um eufemismo em ação". 


11- Releia o terceiro e o quarto parágrafo e explique o emprego das aspas nas expressões a seguir. 

A- "Chamavam-lhe ‘a santa’, e fazia jus ao título." 

B- "Fiquei até o natal para ver ‘a Missa do Galo na Corte’." 


Interpretação 1 - Missa do galo

1.    A descrição é um recurso utilizado tanto na prosa romântica quanto na prosa realista, mas com finalidades diferentes. Compare a seguir duas descrições de personagens femininas: a primeira é de Aurélia, da obra Senhora, de José de Alencar, e a segunda, de Conceição, personagem do conto "Missa do galo".
I. "Era uma expressão fria, pausada, inflexível, que jaspeava sua beleza, dando-lhe quase a gelidez da estátua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiações da inteligência."
 II. "Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar, pode ser até que não soubesse amar."
a)    Qual dos dois textos apresenta vocabulário e construções mais sofisticados em estilo elevado e poético?
b)    Ambos os fragmentos, sendo descritivos, servem para caracterizar as personagens. Entre eles, contudo, há uma diferença essencial quanto à finalidade. Observe algumas imagens e adjetivos empregados:
I. expressão inflexível, gelidez da estátua, lampejo dos olhos.
II.  rosto mediano, nem bonito nem feio, simpática.
Em qual fragmento a descrição tem a finalidade de:
• elevar e idealizar a personagem?
• retratar a personagem como ela realmente é?

2. Preocupada em retratar a realidade de modo objetivo, quase documental, a prosa realista geralmente é marcada pelo registro preciso do tempo e do espaço e pela narrativa lenta.
a) observe as datas citadas no texto. Quando ocorre a situação vivida por Nogueira? Em que noite, particularmente?
b) Em que cidade e em que lugar ocorreram os fatos?
c) Quanto tempo transcorre desde o momento em que Conceição entra na sala em que está Nogueira até o momento em que ele sai à rua para ir à missa?
d) Pelas lembranças que são narradas, esse tempo parece ter demorado para passar ou parece ter passado rapidamente?

3.    Nos textos em prosa do Realismo, a narrativa normalmente flui lentamente, como forma de captar as sutilezas dos diálogos entre personagens, suas reflexões interiores, suas lembranças do passado, etc. Em "Missa do galo", as ações e diálogos são perpassados por uma ambiguidade que fica ainda mais acentuada pela lentidão narrativa.
a) Que tipo de ambiguidade existe no relacionamento entre Conceição e Nogueira?
b) Por que a lentidão narrativa acentua essa ambiguidade?

4.    No século XIX, raramente uma mulher conversava com um homem a sós, principalmente em um ambiente fechado e à noite. Vários elementos contribuem para criar uma crescente atmosfera de intimidade e atração entre as personagens.
a) Identifique no texto fatos que comprovem uma intimidade cada vez maior entre Conceição e Nogueira.
b) Observe os espaços ocupados pelas personagens no ambiente. De que forma eles acentuam essa atmosfera de intimidade e atração?
c) Levante hipóteses: Que razões poderiam ter levado Conceição a sentir vontade de viver uma aventura amorosa? E Nogueira?
d) Que fato posterior, relatado no final da história, confirma que Conceição era uma mulher capaz de se interessar por outro homem além do marido?
e) Quais dos seguintes fragmentos evidenciam a atração de Nogueira por Conceição?
• "Que velha o quê, D. Conceição!" 
•  "cochichávamos os dois, e eu mais que eia, porque falava mais"
• “A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro."
• "ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima"
f) Quais dos seguintes fragmentos evidenciam pensamentos e sentimentos contraditórios experimentados por Conceição?
• "Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se"
• "Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo em criança."
• "Mais baixo! mamãe pode acordar."
• "ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida."
 g) Considerando que Nogueira é o narrador da história e conta os fatos de acordo com suas lembranças e cone sua ótica pessoal, dê sua opinião: Ocorreu ou não algum envolvimento entre Conceição e Nogueira?

 5. A atmosfera de intimidade vai crescendo num percurso de altos e baixos, de vaivém, de quebras súbitas, como se espelhasse os movimentos da consciência das personagens, que ora se soltam mais, ora se reprimem. Releia o episódio em que Conceição afirma desejar trocar os quadros da sala. Observe que, nesse momento, a atmosfera é quebrada e Nogueira sente vontade de ir para a missa. Que associações provavelmente foram feitas pelas duas personagens? .

6. Observe que Nogueira lê Os três mosqueteiros, obra romântica do escritor francês Alexandre Dumas, uma narrativa de aventuras perfeitamente compatível com a sua idade. Já Conceição lê A Moreninha, obra romântica de Joaquim Manuel de Macedo que narra aventuras amorosas de adolescentes.
a) As obras que as personagens leem retratam um mundo de aventuras, amores e heróis compatíveis com a vida que levam?
b) Que significado, então, deve ter a leitura para elas?

7. A seguir, são relacionadas as características relativas ao amor e ao herói ou à heroína românticos. Elabore um quadro com as características realistas opostas a elas, exemplificando-as com situações encontradas em "Missa do galo".
• A mulher amada, para o herói romântico, é sinônimo de beleza e perfeição.
•  O casamento, no Romantismo, normalmente é resultado de um amor profundo e o fim de uma longa trajetória de obstáculos.
•  O amor está acima de todos os interesses; é a mola-mestra que impulsiona e purifica as ações humanas.
• O herói romântico geralmente tem caráter forte e comportamento íntegro e linear, que raramente se altera ao longo da história.
•  O herói romântico é um ser especial, dotado de forças ou poderes incomuns.

8. A prosa realista tem como propósito captar o ser humano em sua totalidade, isto é, tanto exterior quanto interiormente. O retrato interior das personagens — isto é, a focalização de seus conflitos, pensamentos, anseios, reflexões, desejos, etc. — é chamado de introspecção psicológica. Identifique no texto um trecho que evidencie aspectos de introspecção psicológica referente a Nogueira.

9.O Romantismo supervaloriza o indivíduo e suas particularidades. Já o Realismo, mesmo trabalhando em profundidade a personagem, tende a buscar nela aquilo que é universal, isto é, comum a cada um de nós e que define a nossa condição humana. É possível dizer que a situação vivida pelas personagens Conceição e Nogueira — e toda a carga de emoções e valores que a acompanha — é universal ou particular? Justifique.

REALISMO
• Objetivismo
• Descrições e adjetivação objetivas, voltadas a captar o real como ele é
• Mulher não idealizada, mostrada com defeitos e qualidades
• Amor e outros sentimentos subordinados aos interesses sociais
• Casamento como instituição falida; contrato de interesses e conveniências
• Herói problemático, cheio de fraquezas, manias e incertezas
• Narrativa lenta, acompanhando o tempo psicológico
• Personagens trabalhadas psicologicamente
• Universalismo

ROMANTISMO
• Subjetivismo
• Descrições e adjetivação idealizantes, voltadas a elevar o objeto descrito
• Linguagem culta, em estilo metafórico e poético
• Mulher idealizada, anjo de pureza e perfeição
• Amor sublime e puro, acima de qualquer interesse
• Casamento como objetivo maior de relacionamento amoroso
• Herói íntegro, de caráter irrepreensível
• Narrativa de ação e de aventura Personagens planas, de pensamentos e ações previsíveis
• Individualismo, culto do eu


Bibliografia: Português e Linguagens 2. CEREJA,Willian Roberto; MAGALHÃES Thereza Cochar.7ª ed São Paulo 2010

Missa do Galo - Machado de Assis

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.
- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.
- Leio, D. Inácia.
Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
- Ainda não foi? Perguntou ela.
- Não fui; parece que ainda não é meia-noite.
- Que paciência!
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da a1cova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
- Não! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
- Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
- Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
- Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
- Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
- Justamente: é muito bonito.
- Gosta de romances?
- Gosto.
- Já leu a Moreninha?
- Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
- Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
- Talvez esteja aborrecida, pensei eu.
E logo alto:
- D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...
- Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
- Já tenho feito isso.
- Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
- Que velha o quê, D. Conceição?
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.
- É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
- Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem Santo Antônio...
Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:
- Mais baixo! Mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:
- Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
- Eu também sou assim.
- O quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
- Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada.
- Foi o que lhe aconteceu hoje.
- Não, não, atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:
- Mais baixo, mais baixo...
Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.
- Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
- São bonitos, disse eu.
- Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
- De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
- Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.
A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
- Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso dizer quanto, - inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!"
- Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
- Já serão horas? perguntei.
- Naturalmente.
- Missa do galo! repetiram de fora, batendo.
-Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.

E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

alcova: o quarto de dormir. canapé: espécie de sofá, com encosto e braços. apoplexia: derrame cerebral. ébrio: bêbado. arredar: afastar. comborça: amante. espaldar: as costas da cadeira. à socapa: disfarçadamente. devanear: pensar em coisas, imaginar,sonhar. reminiscência: lembrança. assomar: surgir.


Catadores de tralhas e sonhos

In: O Estado de S. Paulo. Caderno 2, 27/3/2015.
Disponível em cultura.estadao.com.br/noticias/geral,catadores-de-tralhas-e-sonhos-imp-,1658853.

São centenas, talvez milhares os catadores de papel nessa megalópole. Puxam ou empurram carroças e catam objetos no lixo ou nas calçadas. É um museu de tralhas variadas: restos de materiais para  construção, papel, caixas de papelão, embalagens de inúmeros produtos, e até mesmo objetos decorativos, alguns belos e antigos, desprezados por algum herdeiro.
Há carroças exóticas, pintadas com desenhos de figuras pop, seres mitológicos, nuvens, pássaros e vampiros. Em Santana, vi uma carroça que lembrava um jinriquixá, só que maior do que o veículo asiático.
Era puxada por um velho e transportava uma avó e seu netinho, sentados em pilhas de papel. Perguntei ao carroceiro quanto ele cobrava pelo transporte de passageiros.
“Depende... Pra perto daqui, cinco reais. Pra fora do bairro, cobro 15 ou 12, depende do passageiro e do dia. Não gasto gasolina, nem nada, é só força mesmo, amigo.”
E haja força, leitor. Mas esse meio de transporte é raro na metrópole. Quase todas as carroças só carregam quinquilharias, uma e outra exibem aforismos, poemas, ditados. Vi carroças líricas, políticas, filosóficas, cômicas, moralistas, anarquistas. Numa delas se lia: “A verdade é uma desordem... Alguém tem dúvida?”.
Noutra, pintada de verde e amarelo: “Aqui só carrego bagunça, mas sou homem de paz”. A que mais me chamou atenção foi uma carroça linda, com uma pintura geométrica que lembra um quadro de Mondrian. Na lateral, estava escrito: “Carrego todo tipo de tralha, e carrego um sonho dentro de mim”.
Era uma carroça mineira, pois ostentava uma bandeira de Minas. Conversei um pouco com esse carroceiro de São João del-Rei. Acho que perdeu a desconfiança nas ruas paulistanas, pois não se esquivou de mim, e ainda me mostrou uma luminária de aço, fabricada em Manchester (1946). Esse objeto havia sido abandonado numa caixa de papelão e recolhido pelo caprichoso carroceiro de Minas.
Especulei a origem da luminária e me indaguei: quantas páginas esse belo objeto tinha iluminado em noites do pós-guerra?
Depois o carroceiro abriu uma caixa e me mostrou livros velhos, em língua alemã. Disse que tinha encontrado tudo numa mesma calçada do Jardim Europa, e agora ia vender os livros para um sebo. Ele me olhou e acrescentou:
“Ando solto, não gosto de ser botado preso dentro de curral. A gente encontra cada coisa por aí... Só não encontra o que a gente sonha”.
Comprei a luminária desse filósofo ambulante, mas não me interessei pelos livros, que talvez sejam relidos por algum germanófilo de São Paulo.
Sei que não é fácil encontrar um sonho nas ruas; mas encontrei carroceiros simpáticos e um assunto para escrever esta crônica.


Milton Hatoum (Manaus, AM, 1952). Romancista, contista, professor e tradutor. Viveu a infância e parte da juventude em Manaus. Mudou-se para Brasília e lá permaneceu até 1970, quando veio morar em São Paulo, onde cursou arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Foi professor universitário de história da arquitetura e de literatura francesa. Ministrou aulas de literatura brasileira, como professor visitante, na Universidade da Califórnia (Berkeley), onde também foi escritor residente.  Estreou na ficção com Relato de um certo Oriente, publicado em 1989 e vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance do ano. O segundo romance, Dois irmãos, de 2000, foi traduzido para oito idiomas e ganhou outro Jabuti. Com Cinzas do Norte, de 2005, Hatoum recebeu os prêmios Jabuti, Bravo, APCA e Portugal Telecom. Em 2008, publicou sua primeira novela, Órfãos do Eldorado, e em 2013 suas crônicas foram reunidas em Um solitário à espreita. Escreveu artigos e ensaios acerca de autores brasileiros e latino-americanos, em periódicos do Brasil e da Europa. Atualmente é colunista do jornal O Estado de S. Paulo e do site Terra Magazine.

In: https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/biblioteca/literatura/artigo/1858/catadores-de-tralhas-e-sonhos 

O copo de água

O COPO DE ÁGUA Um conferencista falava sobre gerenciamento da tensão. Levantou um copo com água e perguntou à platéia: - Quanto você...